quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Alívio passageiro

Abriu os olhos calmamente... e os fechou rápido devido a decepção imediata. O mesmo quarto, os mesmos móveis, a mesma situação. Mais um dia se inicia.

Pensar no sol lá fora já é doloroso demais. Ficou imaginando os homens, em ternos e gravatas, as mulheres, em vestidos e sapatos plastificados. Mais um dia começa.

Levanta da cama lerdamente, os pé demoram a tocar o chão do quarto. Na luz colorida da persiana percebe que o dia será quente. Mais um dia.

Vai até o banheiro e encara o espelho. “Sou eu mesmo ainda, apenas eu”. Na cozinha faz um café, porcamente, com o resto do pó do dia anterior, para tentar acordar.

Mas a vontade não é acordar. O desejo único é retroceder a uma época feliz de poucos meses atrás, que se tornou apenas uma fotografia antiga de um álbum perdido no tempo.

Aquela felicidade acabou. Há apenas o reflexo dela no presente - mais uma tormenta do que um alívio de certeza. Pensa em trabalhar, mas não consegue se mexer. Pensa em escrever isso, mas não consegue levantar a caneta.

Toma três comprimidos, volta para cama, e retorna ao sonhar.
Fim do dia. Ahhh

quinta-feira, 10 de dezembro de 2009

Partida

Primeiro, trato de esquecer os seus defeitos. O perdão é bem vindo.
Falava demais
Pensava demais
Ouvia pouco
Comia carne
Bebia saquê
Nunca esperava
E se esperava,
Era muito.

Depois, passo a esquecer suas qualidades. Uma por uma.
A inteligência
O talento
A delicadeza
O bom humor
A espontaneidade
A insanidade
A compreensão
O amor.

Em seguida, acabo com a sua voz na minha memória. O timbre que me acompanhava por todos os lugares. E os pequenos detalhes se vão, momentos sutis da convivência tão boba, porém, tão adorável.

Tudo vai perecer aos poucos.
O todo vai desmontar
Como uma casinha
Feita de madeira
Mal construída
Descuidada
Partida.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Lembranças da minha infância

Remédios espalhados pela mesa
Resquícios de sangue pelo chão
Bacias com restos de uma vida dentro
Agulhas e similares nos armários
Vozes malfadadas a adivinhar o futuro
Dor escondida em olhos opacos
Certeza do final gritando pelas veias
Lençóis brancos e ar condicionado forte
Tremor ao adentrar o quarto
Choro contido em frente às visitas
Restos de memória se apagando
“São meus primos essas crianças?”
Futuro se despedaçando pelo caminho
Árvores e cinzas do dia chuvoso
“Agosto, o mês do desgosto”
Pássaros voando pela eternidade
Nunca mais vou encontrá-los por aqui
Arrependa-se, o ser supremo irá te ajudar
Diga adeus, essa é sua última chance
“Desligue a música, acabou”.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Verde é o silêncio que mora na sua boca

Ondas verdes
Ondas distantes
Nada além de ondas
De incerteza
E insegurança

Verde é o silêncio
Que morre na sua boca
O adeus não dito
A indiferença mundana
Mas que me importa tudo isso
Se logo tudo vai passar
E estarei bem melhor além
Do aqui nesse mar

Madre, é quando hei de lhe encontrar?
No além mar do pós-vida?
Nos remédios, nas agulhas, nos hospitais?
Todo lugar me lembra você
Principalmente assim, no desamparo
De ter que existir
De qualquer forma, deformada
Esperando o fim, sempre o fim

Nadando assim
Prestes a afogar
Em ondas distantes
Na falta de alegria
Na tristeza sufocada

(p.s- linda ideia de verde-silêncio do meu querido Squeter; só levei mais adiante pela ironia que o destino me trouxe agora, e pela alegoria repleta de agulhas da minha infância)

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Uma dose com a minha obsessão

De um lado da mesa eu, do outro ela
Aprecio seus movimentos flutuantes, leves como plumas de liberdade
Tão doce, tão viva, tão enlouquecidamente sem rumo
Como eu vou esquecer essa risada?
Como eu vou esquecer o tom da sua voz?
Como eu vou ignorar a amada sutileza?
Vive esquecendo tudo à sua volta, numa intensidade sem padrão.

Outra dose, outra cor dentro do copo, isso nem me importa mais
Você vaga sem o menor pudor na minha mente
Forma intensa e delicada, sangue e sabor
Não consigo olhar mais adiante
Não consigo mais olhar para lado algum
Não consigo respirar, pensar, fingir
Enjôo, desespero insensato.

Você pousa o copo levemente sobre o mármore
Sinto o ardor do sol que bate na sua pele
Na sua boca, vermelha labareda
Como eu vou apagar esse jeito de olhar da minha memória?
Como eu vou abandonar os dias que criei para passar com você?
Que lobotomia vai me curar dessa loucura?
Tire uma arma do seu coração, meu bem, e estoure o meu.

Agora tenho juízo, no momento seguinte me pego a flutuar
Tal qual um navegante oscilando em marés incertas
Sugado para dentro de um rodamoinho verde e cheio de dor
De que maneira eu posso desistir depois te tanto tentar?
Como posso não querer, se a lembrança invade meus sentidos?
Como posso alimentar meu corpo, se a minha alma agoniza?
Responda-me, obsessão.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Do doce ao amargo fim

No início era a escuridão, o desespero, o agridoce condicionado a dois corpos que mal se conheciam, mas precisavam possuir um ao outro de qualquer forma.

Desde aquele primeiro olhar no corte da viela, numa meia luz de um dia qualquer, o objeto amado tomou forma e foi deformado pela mente ansiosa impregnada de carência e desejo.

Dias e noites sonhados, beijos a serem dados, mãos entrelaçadas num final de tarde, sua voz, sua conversa, seu sorriso. Tudo parecia se encaixar de forma perfeita na imagem de uma vida em comum.

***

No segundo momento, o doce vigora acima do desespero. A brisa é calma e majestosa, a certeza impera com toda sua arrogância juvenil. A certeza absurda do para sempre.

Rotinas se entrelaçam, duas pessoas viram uma só. O seu sorriso é o meu sorriso, os seus sonhos são os mesmos que habitam a minha imaginação, o amor já aqueceu nossos corações frios e despedaçados por um mundo no qual não confiamos mais.

A compreensão é mútua. Os pequenos defeitos, detalhes patéticos, deixamos passar, buscando não romper o laço estreito que se formou entre nós.

***

Ao amanhecer, tudo parece diferente. Já não há mais calor, apenas uma certa calma que perdura na tristeza que se aproxima com o fim. “Tinha que ser assim”.

O caminho tem uma bifurcação logo à frente e cada um de nós segue aquele que acredita suportar melhor. Músicas antigas agora soam como presságios do momento fatal: a corda se rompe, quando forçada demais.

Agora vejo você sonhando apenas de longe, como um espectador, porém, sem saber o que desejar para ti – companhia ou solidão nesse novo rumo que te espera, nesse “novo” destino ao qual você pretende chegar.

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Life is a Joke

Enterre os seus sonhos no chão mais frio que encontrar
Se afogue na ânsia por lágrimas que não caem mais
Se entregue às canções tristes e suicídas sem pensar duas vezes
Lembre-se do que nunca fez
E nunca vai fazer

Lembre-se das pessoas que gostaria de encontrar
E nunca mais vai ver
Esqueça os dias ensolarados, eles se foram
Você não foi bom o suficiente para fazê-los durar
Liberte-se da sua prisão.

Livre-se das suas próprias críticas insolentes
Do seu próprio desrespeito
Da dor que sentiu em todos que encontrou
E guardou em uma caixa junto com seus arrependimentos
Da dor de toda uma vida.

Que vida? Isso é vida? Algum dia foi?
Isso que você chama de vida é uma perda de tempo
E o que você chama de amor é um consolo para a solidão
E o que você chama de família nem lembra o seu nome
Parabéns por sobreviver a essa piada sem graça.

sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Angústia dos Anjos

"Eu queria correr, ir para o inferno,
Para que, da psiquê no oculto jogo,
Morressem sufocadas pelo fogo
Todas as impressões do mundo externo!"

-de "As Cismas do Destino", Augusto dos Anjos

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Angústia

-perfil

Ela é cínica, dissimulada.
Aparece nas horas mais impróprias.
Não lhe deixa nem ao menos pensar direito,
que dirá exercer suas funções de humano comum.

Não há meio eficiente de escapar à sua companhia,
Então, o que há de se fazer?
Sentar ao seu lado e esperar alguma ação, sua ou dela
Pergunta ou resposta que o livre dessa indagação fundamental

A angústia é uma corda no pescoço.
É a resposta incerta
É a expectativa da derrota prévia.
A consciência da própria estupidez.

E nunca vai embora
Nunca vai embora
Nunca vá embora

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Poema infantil

O pequeno polar

(Baseado nesse desenho abaixo do Fábio Chenepan. Provavelmente - e infelizmente - os pequenos deverão sentir mais pelo aquecimento global do que os seres grandes "racionais" que detêm a razão e que destróem tudo o que veem pela frente).



Ursinho,
Tristonho ursinho
No mundo a caminhar
Plenamente sozinho

Ursinho branco
A pata no gelo
Que se esvai correndo
No agora quente Pacífico

Ursinho olhando
O mundo vazio
Consumido por tudo
Que se esvai em um fio

Ursinho tão triste
Sozinho no Pólo
A mãe ursa se foi
Ele não tem mais colo

Ursinho, ursinho
Se você pudesse falar
Diria que no mundo, pra você,
Não há mais lugar

terça-feira, 13 de outubro de 2009

No escritório

Cena 1

Grupo de pessoas - Ha ha ha, jura??? Ele disse isso mesmo? Tá bricaaaando... Mas quem diria, também pudera, um operário presidente, tinha que ser burro! Imagina só, tanto doutor pra escolher e o povo coloca esse daí pra comandar o país, só gente burra no Brasil, ho ho ho!!!!

Ritinha - hahaha, você me mata nandinha! Sua lôca! Você é doida mesmo, hein menina, tem jeito de artista! Lembra daquele lá, que a gente viu no Louvre, ele pintava umas caras com uns desenhos geométricos misturados, coisa muito da feia... até o cara que pinta na paulista é melhor que aquele, mas a vida é sempre justa com os verdadeiros artistas, a vez do moço dos retratos há de chegar! Lembra daquele quadro que você comprou pra sua mãe? A Marisa Monte parecia de carne e osso!

Fernandinha - Verdade, era muito lindo mesmo. E falando nisso, aquele disco da Marisa é um clássico da MPB, tudo de bom. Mas olha só quem ta aí! A novata da Camila! E aí querida, já comeu algum coisa? Nós fomos a um restaurante delicioso, um clima bem aconchegante... fica aqui pertinho, logo ali na aclimação.

Camila - Hmm...

Fernandinha - Muito bom, você tem que ir lá conosco algum dia...Hã... (pausa dramática)

Ritinha - Mas e aí Roberto, você já foi lá também, né? Conta pra ela que delicia de lugar, bem simplezinho, acho que a porção custa apenas uns 50 reais.

Roberto - Verdade, é um dos mais em conta na região. Do lado daquela clínica de estética ótima que tem logo ali perto do estacionamento, subindo a rua.

Fernandinha -
Ahh (lembrança dramática!!). Mas você mora ali perto da Aclimação né Camila, com certeza já foi lá!! (expressão de felicidade meio deformada)

Camila - Eu não costumo comer fora.

Grupo de pessoas - Ah.

Silêncio até às 17:30h

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

As Ondas

"Não quero emergir e viver à luz deste enorme relógio amarelo que não pára de fazer tiquetaque-tiquetaque".

"Quando estou só, é com frequência que me deixo cair no vazio. Tenho que ter cuidado e ver onde ponho os pés para não tropeçar na orla do mundo e cair no vazio. Tenho que bater a cabeça nas paredes para poder voltar ao meu próprio corpo."

"Agora, a maré acaba por baixar. As árvores aproximam-se da terra; as ondas bravas que fustigam as minhas veias começam a agitar-se mais devagar, e o meu coração prepara-se para ancorar, como um veleiro, cujas velas se recolhem e caem sobre um convés imaculado. O jogo terminou."

-trechos do livro As Ondas, de Virginia Woolf

terça-feira, 18 de agosto de 2009

Anormais animais

Algumas pessoas têm enzimas a menos na cabeça, como diria o meu pai, os chamados anormais. E os sintomas adversos incluem sensações como sentir o tempo passar no vento frio acompanhado pela chuva áspera e cortante. Sentir a ausência de algo que nem sabe explicar o que é. Sentir na garganta um nó instransponível formado por toda a angústia ancestral do mundo.

Um detalhe das pessoas que possuem esse defeito (que talvez seja genético) é a capacidade de se relacionar e admirar apenas os seus semelhantes anormais. E justamente por isso a vida acaba sendo tão solitária, por ser tão difícil encontrar as outras sem-enzimas por aí para formar um vazio completo e construir o abismo para se jogar dentro.

Alguns consideram a falta da enzima uma doença, mas a maioria acredita que seja uma opção. Tenho uma teoria sobre quando se perde essa enzima. Se você sofre algum impacto muito forte na sua mente ainda jovem a tendência de perdê-la é muito grande. E não tem nada a ver com locomoção, fome, frio.

As enzimas desaparecem diante da cara e da indiferença do médico. Na risada e na indiferença do grupo. Na fala e na indiferença da família. Na incompreensão e indiferença do cônjuge. Na punição e indiferença do trabalho. Na dor e indiferença por si mesmo. Um nada multiplicado por milhares de vezes.

Não há festas de aniversário para pessoas sem enzimas.
Não há balada.
Não há férias.
Não há domingo.
Não há família.
Não há plano.
Não há futuro.
Não há empatia.
Não há nada.

De tempos em tempos essas pessoas anormais se encontram no fim do mundo para se distrairem e unir suas ausências, criando sensações etéreas e desconexas. Dessa união nasce o que as pessoas normais chamam de arte.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Natal dos hedonistas

.

“Pressão?”
“6.4.”
“Continua baixando?”
“Sim, de forma desenfreada”
“Respiração?”
“Não há mais sinal de estímulo próprio, as máquinas já fazem todo o trabalho”.
“Batimento?”
“Estável, mas muito baixo”.
“Hmmm... Ele não deve passar de amanhã”.

(Dezembro anterior).

Era uma noite no final de dezembro, provavelmente noite de natal, não me recordo a data, mas as árvores estavam repletas de luzes coloridas e o cheiro de comida vinha por todos os lados. Minha depressão continuava forte, a vontade era passar os próximos cinco dias na cama apenas respirando. Minha irmã bate na porta. Deus do céu, pra que tanta pressa? Nem ao menos em Deus eu acredito! E aquela história da virgem Maria ter um filho enviado por anjo nunca me convenceu.

Visto minha velha camisa de flanela dos 15 anos, passo um batom vermelho-puta nos lábios e sigo para o meu matadouro emocional. A família reunida – o que sobrou dela – me aguarda no carro para irmos a casa dos avós e nos entupirmos de comidas, doces e champagne barata. Minha mãe e minha irmã conversam no caminho, sempre preferi viajar no bando de trás.

A trilha sonora daquela noite era o Big Time, do Tom Waits. A faixa era Cold Cold Ground. Me sentia enterrada à sete palmos e nada pareceu mais adequado para o momento. No caminho, as duas resolveram comprar flores para a esposa de nosso tio, que tinha acabado de ser mãe.

Pulo do carro praticamente no meio da avenida e começo a bisbilhotar as flores nas barraquinhas em frente ao cemitério. Rosas, margaridas, gardênias, lírios. Escolhemos um buquê de rosas cor de chá com bordas avermelhadas e ganhei uma flor da vendedora – acho que por ter conversado com ela, numa noite na qual as pessoas estão muito mais preocupadas com suas festas natalinas.

Chegamos a casa dos meus avós. Um prédio bonito, de classe média, daqueles condomínios cheios de crianças saudáveis e barulhentas. Minha avó põe as flores no vaso e não percebe o cartão dentro do embrulho, que mergulha na água junto com as flores.

Conversa vai, conversa vem, conversa sem interesse, sem assunto, só ruídos humanos por todos os lados. Fulano casou, cicrano morreu, não sei quem traiu o marido, não sei quem mais foi morar no exterior.

Na TV, as comemorações brancas, o papa se preparando para falar e eu me entupindo de tudo que tivesse algum teor alcoólico. Meu avô adentra a sala para nos cumprimentar e o clima fecha e escurece as luzinhas da árvore. Cheio de lenços, tubos estranhos, andar atrapalhado. Ele está com um câncer terminal espalhado por diferentes partes do corpo não tão velho.

Mas quebrando as expectativas cheias de pesar dos que o cercavam, não fala conosco, vai até a cozinha e volta com uma garrafa de champagne que começa a servir na sala, com um sorriso sarcástico. Mesmo sem conseguir falar, me interesso mais por suas expressões silenciosas do que pelo resto. Identifico-me com seu humor ácido, hedonista nato. Mas realmente não sei de onde ele ainda consegue tirar tanto bom humor.

Apenas um ano antes, conversávamos na mesa da sala de jantar. Ele já estava doente, mas ainda conseguia falar um pouco. Ironizava de certa forma a cerimônia ao seu redor, e bebíamos vodka russa, licor, whisky e tudo o que pudesse alimentar nosso natal hedonista que parecia mais um dia qualquer, que seria esquecido como todos os outros.

Sempre encontro alguém pela última vez na noite de natal, e nesse ano foi ele. Alguns meses depois, estaria em uma cama de hospital, tomando morfina para aliviar as dores e esperando o chamado divino no qual nunca acreditou. Não o conheci muito bem, mas sabia que essa morfina foi seu último momento de prazer e fiquei feliz por ele, como se estivesse injetando morfina nas minhas próprias veias.

Algum tempo depois de sua morte descobri antigas histórias sobre navios, jogatinas, prostitutas. Sempre dava risada ao pensar naquele velho em fim de linha aprontando todas as loucuras que lhe foram permitidas.

Nesse natal não haverá vodka russa nem a ironia ácida e cheia de pecado para me salvar daquela noite. Mas uma coisa é certa: não esquecerei de, ao menos em pensamento, fazer um brinde àquele hedonista de caráter duvidoso que cantava em seus últimos dias “beba por mim, beba pela minha saúde, pois você sabe que não posso mais beber!”.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

"Happiness is a warm gun"

.

“ELE morreu”. A voz ao telefone era seca e direta, como alguém sem paciência e disposição física para argumentar contra o destino ou as causas que levam a vida para a eternidade. Fiz silêncio. Depois pensei em ligar para o trabalho e avisar sobre minha ausência devido a necessidade de ir à festa de seu funeral. Ocupado. Fora de área. Então dane-se o telefone.

Sua mãe chorava na porta do meu quarto e por alguns segundos consegui perceber a dor tão profunda de um ser que acaba de perder o filho. Tinha que correr para o funeral. Antes precisava levar um presente para o morto e comprar um suco para curar a ressaca da noite anterior.

Cheguei a um lugar enorme, que vendia de tudo. Livros, bicicletas, carne, roupas, geladeira, qualquer objeto que tivesse um nome e alguma (in)utilidade estava naquele templo do capitalismo. Camisetas de Che Guevara, Salvador Allende e Jesus Cristo por 9,99.

Dou voltas sem sentido naquele labirinto moderno e reflito sobre questões de vida e morte, felicidade e desespero, amor e ódio. Tudo me parece muito claro, como uma visão: numa tradução livre, “felicidade é uma arma carregada”. Dou risada da minha própria reflexão e saio cantarolando a música.

Um homem que parecia ter saído direto dos anos 30, com um bigode charmoso e chapéu a la Mastroianni estava sentado em um banco e me observou passar. Ouvindo a música, começou a cantá-la também.

Com delicadeza, retirou uma arma do casaco negro e passou a atirar em tudo a sua volta. As pessoas correram como formigas desgovernadas que sentem a ameaça do intruso em sua terra. E a música cresceu ao fundo, com a voz de Lennon parecendo uma professia apocalíptica vinda direto do inferno. Ou talvez de algum lugar mais profundo.

Precisava pegar um ônibus. Mas que ônibus? Vou e volto por linhas inexistentes de um universo onírico me deparando com faces que nunca havia encontrado antes em vida. Chego ao local. A tristeza percorria faces apáticas em toda a imensidão da casa onde o velório prosseguia.

Estava na cozinha comendo salgadinhos preparados para a festa do funeral quando ouço gritos no quarto. O morto havia voltado para acertar umas pendências deixadas em vida. O homem de chapéu reaparece na hora apropriada e atira nele, que se estende no caixão como se nada tivesse acontecido.

“Happiness is a warm gun, momma!
Bang! Bang!
Shoot! Shoot!”.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Resquício de outras épocas

(Território referente ao atual México, cerca de 700 anos atrás)

"A poeira já me corrói o nariz, sinto o sangue ficando seco ao redor da boca. Tão estranho não saber o lugar exato a que estou chegando, apesar de saber para onde me levam. Sinto-me um bicho acuado.

Nessas horas me lembro dos pássaros que cacei e dos acertos de contas na aldeia, vi olhos vítreos tentando viver enquanto a morte os carregava. Nos meus braços. Ao deus Sol fiz oferendas, à chuva dei a lágrima de crianças pardas com olhos negros e brilhantes para a próxima colheita ser próspera. E agora é minha vez.

Minhas pernas não conseguem dar apoio ao corpo nessa subida da escadaria. Meu Sol, talvez seja a última vez que eu te verei neste corpo. Penso em meus antepassados que talvez vá encontrar nessa nova terra desconhecida além do solo desértico no qual nasci. Mi madre, no llores. Estarei em seu altar.

O sacerdote parece impassível diante do meu temor. Está muito compenetrado afiando os instrumentos de sua devoção. Meu coração bate rápido, o vento traz grãos de areia que se misturam ao suor.

Agora o céu está mais próximo. Desisto de lutar, não há mais para onde fugir. Espero que meus irmãos de outras eras me carreguem pelo caminho seguro rumo a um lugar melhor, como me foi prometido por esses que me levam a vida.

Chegamos ao topo. Agora a arma se aproxima do meu peito. Despeço-me de ti meu senhor iluminado antes que meu sangue tinto escorra em devoção nas tuas escadarias.

Meu coração ainda irá pulsar nas mãos do assassino, antes mesmo de minha alma se desprender do corpo. Hei de abandonar tudo por ti Huitzilopochtli. E que o medo jamais vença a guerra, que nunca há de cessar na carne humana".

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Filhos da Cultura- Cáp. 9

A macro vida de um micro empresário

"Baseado na crença de que ativos intangíveis são parte do DNA de corporações visionárias, como líder tenho a função de influenciar meus funcionários em suas atitudes a nível local para que hábitos sejam incorporados aos padrões da empresa. Toda a sociedade precisa de alguém para seguir, um ícone, um modelo, uma pessoa na qual a massa confie.

Todos nós empresários sabemos que a massa não é lá essas coisas. Na verdade, é uma porção de gente com poucos dotes mentais. Ou para ser mais claro, um monte de gente estúpida que precisa seguir alguma coisa como cegos em tiroteio.

Voltando... com base nessa percepção da necessidade efetiva de mudar efetivamente o pensamento efetivo de funcionários não efetivos, me coloco na posição e na obrigação moral de auxiliar o mundo a se tornar um lugar melhor. Bom, pelo menos a minha empresa. Ou talvez minha casa. Uma banheira de espuma e férias na Europa seriam de bom tamanho. Talvez mudar de país, por que esse aqui é governado por uma anta ex-metalúrgica.

Bom mesmo era o Nixon. Lembro de quando era pequeno, nos anos 50, e viajava com a família para os Estados Unidos. Povo bom, branco de pele e coração. Só por causa de meia dúzia de vietnamitas fizeram o monstro do Nixon, mas só eu estava lá e me lembro que vida era muito boa.

Aqui no Brasil não. Ao invés de injetar dinheiro na economia para evitar a recessão (!), dar dinheiro às empresas, que fazem esse país avançar, o governo dá dinheiro para os pobres. 22 reais por mês. E quem precisa dessa mixaria? Com esse dinheiro multiplicado por milhões de favelados o setor automobilístico sairia do vermelho mais rápido do que entrou.

E imaginem só, um presidente que não lê jornal, tinha que dar nisso mesmo. Eu não. Fato é que me formei na melhor faculdade do estado há 40 anos e trabalhei na área muito tempo. Depois criei minha própria empresa. Agora sou um grande microempresário.

Até hoje não conheci ninguém com um nível intelectual que pudesse ser comparado ao meu (só os meus antigos patrões, porque se eles estavam naquele lugar, eram pessoas incríveis). E aquele tal de Hunter Thompson? Pois é, de tempos em tempos sempre aparece um novo idiota que se acha jornalista, mas essa é uma arte para poucos, apenas privilegiados tem o dom de escrever.

Bom, vou me retirar pois tenho que terminar a minha leitura diária de todos os jornais de economia e depois mandar um e-mail pro José Eli da Veiga elogiando seus artigos publicados até hoje. Um gênio! Gênio que é gênio ajuda as empresas a saírem da crise, o modelo capitalista sobreviver, reflete sobre a recessão, e não fica pintando rostos deformados nas paredes nem tomando antidepressivos.

Odeio depressão. Com um mundo tão maravilhoso, como alguém pode ter depressão? Com lugares como as ilhas do Caribe e as praias de Ibiza, como não ser feliz?
Considero-me uma pessoa extremamente feliz apesar de dormir uma hora por noite, tenho muito orgulho disso. Apenas uma grande perda no mercado de ações faria com que eu me matasse. Preciso ver a cotação de hoje".

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Filhos da Cultura- cáp. 8

O lamento dos deslocados

"Já faz algum tempo que minha existência não importa para mais ninguém... nem mesmo para mim. Mas vida, nem parece que eu tenha te amado tanto, e eu realmente te amei. Quando se é poesia e infância, lúdico e sagrado, as possibilidades parecem infinitas. Os ensolarados se tornaram apenas este maldito hoje".

São Paulo, 1983

"Um quadrado na parede. Retas que delimitam minha existência. Lá fora não há nada. Hoje não é um dia para se ganhar. Amanhã será? Pausa para o trabalho, função automática acionada, prazer inexistente. Mas daqui a pouco saio na chuva e volto a me machucar. Alegria alegria, sangre desse depressão de merda! O ar frio dessas paredes me lembra a sala de espra de um hospital. Estou na cama cheio de tubos e seringas no braço... a vida é frágil, esta que vivo mais ainda. Desgosto profundo".

Lourenço abre a porta. Observa o corredor até a escada que contorna o edíficio. Mas realmente se torna cada dia difícil encarar o parapeito, ele certamente se jogaria. Ou estaria apenas se enganando? Mais um covarde em seu casaco de couro em um dia frio. Talvez a própria vida tenha lhe enganado esse tempo todo. Lembrou-se de quando era mais jovem, e sonhava com Moscou, com as ruas de Berlin, qualquer lugar que fosse uma novidade interessante, um novo motivo que lhe trombasse no acaso de algum dia.

Venta muito no alto do edifício. O sétimo andar poderia lhe estourar os miolos.
Ora, tão simples cair numa esquizofrênia sem volta. Não existe espaço para quem nunca se encaixa em lugar algum. Lourenço se camufla na pele de seu casaco medíocre, como sempre faz para encarar o frio. O caminho é o mesmo de todos os dias, os mesmo contornos na calçada, a mesma espectativa dissecada na próxima esquina, outra frustação as sete da noite. Isso tudo é completamente simples, pois o nosso personagem não se dá ao luxo de ser alguém.

Mas existe o real em cada um, pelo menos ele acredita. Porém há de ser muito forte para ser real, é como estar morto, com os ossos a mostra, com toda delicadeza e fragilidade humana exposta a flor da pele; e isso pode doer mais do que o suportável. Passando pela ponte, Lourenço se lembra de algumas cenas curiosas da infância, apesar de nem ao menos estar certo de ter sido criança anteriormente. "Sonhar deve ser uma doença, a mais fatal de todas. Esse raciocínio pode soar um tanto irônico, já que a fatalaidade pode exterminar o hoje com apenas um sopro na direção contrária à sua vida".

"Alguns sonhos duram a vida inteira. Eles imergem nos nervos e ficam lá por décadas. E pode-se perguntar o porque uma pessoa que vive com este mal não dá fim em tudo com as próprias mãos? Por que insiste nesse desespero, se como o nó no cadarço que aprendemos a fazer nos anos de infância, temos habilidade suficiente para deslocar o pescoço que nos sustenta a cabeça? Simples assim: o verme do sonho é a esperança, que parece boa e serena até nos fazer acordar desse ópio sonâmbulo com uma facada nas costas".

Tão fácil cair numa esquizofrênia sem volta...

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Filhos da Cultura - Cáp.7

Despedidas

“Carrego a morte no bolso, como diria aquele velho escritor bêbado de outra época. E às vezes a encaro só para ter a sensação de fatalidade da minha existência. Entretanto, nunca me sinto preparado o suficiente.

Ontem a noite minha mãe me deu um bombom de presente e disse que eu deveria ver meu pai antes do câncer acabar com sua vida. Pensei em responder: pra que? Pra que tudo isso? Todos vamos morrer, não vamos? Então por que não encarar isso de uma vez e parar com as despedidas sem sentido?

Queria poder ouvir apenas o necessário. Tantas palavras inúteis me envolvem grande parte do tempo. E pra que? Vamos morrer do mesmo jeito.

A única coisa que desejo para o meu pai e seu câncer é que ele encontre um lugar bem melhor do que esta insanidade chamada vida, onde seus sonhos de infância se realizem, onde a dor não possa mais lhe atingir, onde o tempo não corra alucinado contra a vida, onde ele possa voar mais alto que os anjos.

Um lugar no qual tudo aquilo que ele desejou um dia, tudo aquilo em que acreditava quando era pequeno, tolamente, pudesse se tornar o que ele chamaria de vida aos 60. Que todos nós encontremos nossos sonhos destruídos pela vida em outro lugar, talvez nesse lugar chamado morte. Essa é uma luta sem vencedores”.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Filhos da Cultura - Cáp.6

A ansiedade
- perifl

Ela é magra. Bem mais magra do que você imagina. Tem os ossos a mostra, tensos, rijos, quase perfurando a fina pele. Além disso, a altura desproporcional causa um certo mal-estar associada a essa estrutura tão frágil. Em seu comprimento, a coloração entre o roxo escuro e o azul petróleo transmitem um ar de doença por onde passa. Os dedos são finos e longos, com as veias saltando da pele e as articulações machucadas por tantos movimentos repetitivos.

Ela passa a maior parte do tempo escondida, não suporta a presença alheia, a convivência; prefere a fuga e um lugar para se deteriorar sozinha. Qualquer buraco é melhor que a claridade. Mas quando aparece é desesperada, intensa e quase insana. Não há um segundo de descanso. Os membros se movem incessantemente até surgir dor em cada ponto espalhado no corpo.

O coração é uma bomba pulsando dolosamente, a mente parece desejar transpor o limiar que lhe é restrito, o imaginável, para ganhar pernas e sair correndo em busca da paz que não encontra na própria morada. A respiração não existe: o que há é um fluxo de gás carbônico ofegante que entra e sai dos pulmões de maneira aleatória e na maior parte das vezes não leva ar suficiente para satisfazer o corpo.

A cabeça calva com veias azuis saltitando nas têmporas denuncia a enxaqueca permanente. Os dentes são muito afiados e machucam a própria pele o tempo inteiro. Na corrida contra ela mesma, só encontra a perda no final.
Nenhum momento é agradável.
Nenhum suspiro traz o alívio.

terça-feira, 30 de junho de 2009

Filhos da Cultura - Cáp.5

Neal Cassady
- perfil

Típico americano louco, sonhador. O nariz comprido é proporcional ao cigarro, sempre no canto direito da boca. Aceso. O cigarro queima, não tanto quanto o sol do México quando você pisou naquela terra abençoada por um deus que não existe. As santas de pele queimada pediam mais tabasco inglês logo a você, profeta americano, quente e odiado no Texas, onde as pessoas nunca mudam.

As crianças como anjos em um sonho fundamental se elevavam ao céu no braço quente de suas mães e você só observava, você que não teve mãe. E o seu pai era um bêbado. E você era um bêbado. E seu pai morreu. E você morreu. E todos nós um dia vamos morrer, mas enquanto isso continuo pensando em você e na sua caminhada torta por um terra tão correta e mentirosa como toda a estrada da América.

Ainda pensamos em você Neal, herói de outrora, do tempo que já passou, das possibilidades inesgotáveis - que para nós já se acabaram. Eu penso em como somos perdedores sem futuro. Eu penso em como o mundo nos deu as costas e riu das nossas intenções medíocres e mal planejadas.

Mas tudo isso é uma grande besteira meu caro Neal. Você que corria por Denver com suas mãos congeladas nos dias inverno e que comia ao lado dos vagabundos bêbados em algum prédio mal pintado. Oh pobre Neal, criança sem botas de neve congelando na indiferença mundana que nunca lhe deu abrigo, você foi o próprio Jesus enxotado e pregado em uma cruz de lamentações.

segunda-feira, 29 de junho de 2009

O velho e a sombra

A sombra
A sombra ri
A sombra dança
Em círculos na sala

A hora escorre
No relógio, a sombra
Se escora na embriagues
Do velho à beira da morte

O velho ri
Da sombra morta
Que se esgueira nos cantos
Em busca da última derrota

A sombra ri
O velho chora
As luzes se apagam
Os dois vão embora

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Filhos da Cultura - Cáp. 4

Una puta llamada Esperanza

Argh. Universo, buda, estrelas, jesus, me respondam algo - não que isso vá fazer alguma diferença. Meus ossos doem tanto, nem aguento levantar da cama. A noite os sonhos parecem uma piada sem graça. Encontro pessoas distantes, sonho voar pelo céu sem limites, sinto o amor nunca encontrado nessa terra sã.

Sonho. Ele consegue ser tão cruel. Acordar é chegar muito próximo daquele limiar tão sutíl do insuportável. O abismo é tão próximo que consigo ver o meu rosto refletido na sua decadência. Essa vontade, cobiça, desejo, egocêntria, horror sobrenatural e desumano do suicídio. A vergonha da espécie que coloca o ponto final antes da hora certa. Mas quem disse que as horas são iguais para todos?

Nesse exato momento uma pessoa do outro lado do oceano descobre que é o ser mais feliz do mundo e agradece de joelhos a prece atendida por sabe-se lá quem. A pouco mais de um quilômetro daqui um homem de 20 e poucos anos é atropelado e vê a sua vida passando como um filme insuportável e injusto. E talvez nessa cidade existam mais pesssoas como eu. Provavelmente há alguém que odeie o trabalho necessário para sustentar os filhos e olhe para o mesmo viaduto todos os dias desejando estourar os miolos debaixo do próximo carro.

Ah, como os meus ossos doem. Centenas de agulhas ao mesmo tempo perfuram cada poro, atravessam os músculos, invadem os órgãos. Meu coração parece uma bomba prestes a explodir. O pavio queima rápido e dolorosamente, sinto que o fim está próximo, ao menos espero isso ansiosamente. A ansiedade me corta os pulsos, me dá falta de ar, mal consigo abastecer os meus pulmões com oxigênio. Um calafrio percorre o meu corpo em busca de alguma saída e me coloca contra a parede a cada instante, em um xeque-mate eterno. O peso da sobriedade já é mais forte do que eu posso suportar.

Meu estômago dói, não consigo mais dormir, aos poucos perco os movimentos mais simples e adquiro nuances verde musgo num olhar apático. O sangue corre quente nos braços, sinto ele seguir seu destino num fluxo incessante e delinquente, jogando vermelho tinto nos meus órgãos e mantendo a vida apesar de tudo.

Imagino o som do gatilho e seu tiro consequente; imagino a fraqueza dos músculos enquanto o veneno se dissolve no sangue; imagino o vento frio e veloz que corta o rosto no momento da queda; imagino a dor que abre a veia do pulso; imagino o estalo no momento em que o sistema nervoso se desliga da estrutura; imagino a dose quente que segue pelo braço até o coração. Nunca acreditei em possibilidades, mas agora vejo que existem muitas. Ainda há esperança.

quarta-feira, 24 de junho de 2009

Filhos da Cultura - Cáp. 3

Solidão

O copo reflete a luz vazia amarelada da sala repleta de pó. A fumaça cria um ar de nostalgia, anos perdidos, pessoas perdidas. O cigarro caído na ponta dos dedos é um mero coadjuvante nessa cena decadente. Lembro de vozes roucas do passado. Me sinto entre on the road, na beira da estrada, ou em um buraco qualquer na França dos anos 60. Quanta besteira. Sou só eu, numa época medíocre, cercada de silêncio e sem ideia alguma.

Os tempos não estão mais mudando Mr. Zimmerman, as coisas nunca pareceram tão iguais. Não que elas realmente tenham sido diferentes, mas pelo menos havia esperança de tal acontecimento. Agora somos todos perdedores, nos deixamos levar pelo tempo, pelo sistema corrompido de investimento e homens de terno que escrevem na parede caminhos imaginários tão insensatos.

Agora só há vazio. Um buraco negro na solidão da madrugada que indica o caminho para a revolução individual de todos os deslocados como eu. Aqui é América do Sul. Não há blues de Mississipi e nem ao menos a inocência inerente aos índios e incas assassinado aos milhões pelos malditos espanhóis. Somos uns bastardos sem chance, corremos atrás de governos paternalistas e deixamos de ter ideias.

O fogo está apenas na dança noturna de imbecis desocupados, que dançam como robôs futuristas em roupas coloridas nas esquinas. Nas pílulas de arco-iris que inspiram a vida novamente. Em caixas tarja-preta para alimentar o sono e os sonhos.

terça-feira, 23 de junho de 2009

Filhos da Cultura - Cáp. 2

Lobotomia na Oscar Freire

(Um bêbado caminhando com sua loucura)

AH, ah ah....
Que NOJO, nojo, cabeça virando em círculos da existência sem sentido, me tire desse nada!
Ah....

Ok... respire fundo, 1, 2, 3, seção de yoga, o médico recomenda repouso e menos stress para as mulheres translúcidas da Oscar Freire em seus vestidos de 1 milhão de dólares e eu aqui, só me resta a roupa do corpo, que sem dúvida vale mais do que a alma de cada uma delas...
E suas viagens à Europa, a Europa dos turistas endinheirados sem ter onde gastar que cobiçam a Monalisa, fazem fila pra olhar nos olhos dela com seus olhos ignorantes e apáticos... quem é a Monalisa, que é ela??

Do livro, ah sei, deve ser a capa daquele best seller...
O que? Não. Por favor não.
Qual o incômodo? O que lhe incomoda? A minha cara? A minha cara suja e sem brilho, sem lantejoula, sem jantares de sexta a noite, sem faculdade de inteligentes meninos e meninas cretinos?

Acho que vou surtar... vou beber para não derrubar o muro a minha volta, eu preciso me escondre atrás dele senão vão me descobrir.
Todos os homens polidos me olham de esguio, me fitam com ar superior, me desprezam na sua pretensão imortal, me julgam da sua elevada e crente temência ao senhor dinheiro por quem compram e vendem a alma...

E como entrar nessa roda da fortuna? Como não ficar enjoado mesmo sendo um zé-ninguém-de-merda como eu?
Até mesmo aquilo que eles consideram merda acabam comprando e vendendo por status, hahaha, New York, lugar de loucos excêntricos, vocês são tão diferentes, olha como isso é engraçado!!

Ah Deus!!
Dê-me a sua mão branca! Olhe-me com seus olhos de cristal azul!
Eu que sou apenas um preto sem nada, um miserável castigado por meu pai Noé!
Oh Deus, me envie raios de lobotomia, lobotomia, lobotomia!

segunda-feira, 22 de junho de 2009

Filhos da Cultura - Cáp. 1

Um jovem viajante rico

(Troca de e-mails entre duas pessoas sem esperança numa maldita segunda-feira)

E-mail 1

“Tô puta porque enquanto nós trabalhamos feito formigas anônimas nessa porcaria de País sem chance para nada (a não ser para dar mais lucro e viagens à Europa para o patrão visitar a Monalisa no Louvre) alguns riquinhos viajam pelo mundo tirando fotos medíocres e depois escrevem em seus blogs "ah, como o México é um lugar exótico, ah, como foi legal ver os escritos daquele babaca do Jack Kerouac em Nova Yorque, acho que vou fumar um cigarro pra comemorar a riqueza poética daqueles vagabundos beats!"

E-mail 2

"Nem me fala nisso. Quem é esse mané?
Essa história me deu calafrios novamente, os mesmos que eu sentia com aquele pessoalzinho batuta e sem-cultura que voltava "cheio de vida" de suas viagens:

'Adoro Klimt, Gustavo'
'Nossa, passei na Abbey Road, os Beatles são bons mesmo'
'Comecei a gostar de blues depois que visitei o museu de Memphis'

Enfim... o idiota aqui antes era um vagabundo tímido, coitado...
Mas fico imaginando eles numa familia comum...
São muito ingênuos, cabeça fraquíssima, e mesmo assim foram para os EUA, Europa, ganham muito mais que muita gente. Contato é tudo nessa vida.
Vinte anos de imaturidade. Quando tiver 29, terá realizado mais sonhos do que eu mesmo se me dessem 352 anos de vida. É, a vida é injusta... e minhas aspirações e preocupações abstratas são bem maiores.

E-mail 3

"Pois é....
Que enjoô
vamos nos preparar para os próximos 350 anos de vida, quando esses cretinos já terão dado a volta ao mundo umas três vezes e nós continuaremos passivos e humilhados...
Mas uma coisa é certa: eles jamais, nem em outra encarnação, conseguiriam aproveitar qualquer misera esquina de Paris ou de Nova Yorque como nós aproveitaríamos... a ignorância é cega e apática, tenho pena desse tipo de gente...

Enfim,
aguenta firme essa segunda de merda
Um abraço".