terça-feira, 27 de julho de 2010

Áspera felicidade

“I look at my watch it say 9:25
and I think ‘Oh God I'm still alive’
We should be on by now
We should be on by now”

Time – David Bowie


O conceito de felicidade – e o uso que se faz do tempo para atingi-la - varia muito de pessoa para pessoa. Para um jogador, vencer é o mais importante, por mais medíocre que seja o jogo. Para um pianista, a execução perfeita daquele concerto que ele ensaiou anos a fio o leva a satisfação plena. Para alguns empresários, a cotação em alta na bolsa já garante a elevação da alma.

Tem-se discutido muito sobre a inclusão da felicidade de uma população entre os aspectos considerados no PIB (Produto Interno Bruto), indicador que representa a soma de todos os bens e serviços produzidos em determinada região. Mas levando-se em conta as suposições acima, isso se torna um tanto complexo.

(Pillars of society, George Grosz)

A ideia geral de felicidade que se tem hoje é basicamente a da santa classe média - do início ao fim de uma vida, tudo parece se resumir de maneira bem prática. Após a infância, espera-se que uma pessoa se forme no ensino médio, faça uma faculdade e arranje um bom emprego (se for advogado ou engenheiro será muito bem recebido nos restaurantes!). Tendo cumprido esses requisitos básicos, é chegada a hora de casar, ter filhos e cria-los até se formarem. E depois disso?

O ideal é ter juntado um dinheiro durante a vida toda (o que não é muito difícil, já que o tempo para gasta-lo foi preenchido por trabalho e brigas conjugais) para enfim poder “descansar” em um sitiozinho ou em uma casa de praia no litoral sul. Pronto, eis que se pode esperar a morte sossegado.

Assim se mede a vida e quando a pobre pessoa que seguiu esse ciclo vicioso percebe, já está velha não só de corpo, mas também de espírito - acha tarde demais para começar algo novo, tentar sair desse vício de querer ter uma vida perfeita de acordo com o preceitos de sabe-se lá quem.


(Suicide, George Grosz)

Nos acostumamos a contar as horas, os dias, semanas, meses, anos, como se realmente essa divisão valesse alguma coisa. Talvez seja difícil perceber que o tempo é apenas uma ilusão, que existe apenas o agora – o passado não serve de muita coisa e o futuro é uma esquizofrenia sem tamanho. O que não exclui ter planos, aí que se dá uma confusão imensa.

Pouco adianta malhar três vezes por semana, comer legumes, dormir exatamente oito horas por noite pensando em como se estará daqui 50 anos: amanhã você pode ser atropelado meu caro. Ou semana que vem pode descobrir alguma doença nova. Ano que vem pode não conseguir sair de uma cama. Mas também é uma estupidez romântica tacar o chamado “foda-se” para tudo.

Só existe esse momento para tentar plantar algo de bom e construtivo, algo que faça valer a existência pela plenitude de cada momento, sem a espera de nada em troca. Fazendo isso, se o futuro vier, será bem vindo - como diria Lou Reed: “você só vai colher o que plantar”. E se não vier, tudo bem, a vida foi eterna enquanto durou.

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Bagunça


Acho que prefiro
Mas não tenho certeza
Se tento me encontrar nesse delírio
De procurar não me perder


E encontro um motivo
Para tentar me buscar perdido
Procurando me achar
Mas sem certeza de me querer

Imagem: O carnaval de Arlequim, Joan Miró

quarta-feira, 7 de julho de 2010

A peça


Imagem: Catalan Landscape: The Hunter, Joan Miró

***

No início a peça achava que fazia parte do tabuleiro de xadrez.

Começou pretensiosa, queria ser rei, rainha. Após a primeira derrota, antes mesmo de entrar em campo, cobiçou ao menos o posto de um bispo ou de uma torre. Perdida a prepotência inicial, deixou-se estar entre os peões. Mas a recepção não foi calorosa.

Lhe empurraram para fora do tabuleiro, era diferente deles. A cor não era a mesma, o desenho não era o mesmo, tudo era estranho ao mundo das peças de xadrez. Sem nenhuma utilidade específica, a peça ficou de canto em canto obstruindo passagem, ocupando espaços alheios e importunando o campo de visão das outras até resolver ir embora.

Mas não tinha onde passar a noite. Para sua esperança, avistou ao longe um jogo de damas. As senhoras circulares e chatas logo a olharam de soslaio, mas pouco fizeram. A peça achou que finalmente havia se encontrado. Pura ilusão. Também era uma peça estranha entre as grã-finas.

Quando a caixa das pedras estava sendo fechada após longa batalha, delicadamente, as damas sentiram lhe informar que não havia mais espaço para pernoitar por ali. Quando deu as costas e seguiu seu caminho, pode ouvir ainda algumas risadinhas jocosas ao fundo.

Para onde poderia ir? Os tabuleiros não são lugares de fácil adaptação. Todos são parecidos entre si e um corpo estranho pode causar grande estrago mostrando que a preciosa semelhança não passa de um conjunto de plástico vazio e frágil. Ela era de madeira, hoje em dia quase não se fazem peças de tamanha densidade.

Procurou se encaixar no Gamão. War. No auge do desespero foi para Las Vegas tentar a sorte rodando feito uma prostituta nas mesas de jogatina. Logo começou a cair em copos de whisky e, em algumas semanas, já mergulhava neles seguindo o próprio vício.

No final de uma manhã ensolarada, em plena ressaca, a peça acordou e saiu a cambalear pelas ruas na tentativa de encontrar algum ser inanimado com quem pudesse conversar sobre seus dias solitários.

Numa distração matutina, acabou atropelada por um pé humano no meio da calçada e voou para longe. Com a madeira dolorida, ainda sentiu alguém carrega-la e lança-la direto a uma caçamba. Quando acordou, estava cercada por outras peças – todas estranhas, quebradas, mutiladas, diferentes. Finalmente em casa.