quinta-feira, 30 de julho de 2009

Natal dos hedonistas

.

“Pressão?”
“6.4.”
“Continua baixando?”
“Sim, de forma desenfreada”
“Respiração?”
“Não há mais sinal de estímulo próprio, as máquinas já fazem todo o trabalho”.
“Batimento?”
“Estável, mas muito baixo”.
“Hmmm... Ele não deve passar de amanhã”.

(Dezembro anterior).

Era uma noite no final de dezembro, provavelmente noite de natal, não me recordo a data, mas as árvores estavam repletas de luzes coloridas e o cheiro de comida vinha por todos os lados. Minha depressão continuava forte, a vontade era passar os próximos cinco dias na cama apenas respirando. Minha irmã bate na porta. Deus do céu, pra que tanta pressa? Nem ao menos em Deus eu acredito! E aquela história da virgem Maria ter um filho enviado por anjo nunca me convenceu.

Visto minha velha camisa de flanela dos 15 anos, passo um batom vermelho-puta nos lábios e sigo para o meu matadouro emocional. A família reunida – o que sobrou dela – me aguarda no carro para irmos a casa dos avós e nos entupirmos de comidas, doces e champagne barata. Minha mãe e minha irmã conversam no caminho, sempre preferi viajar no bando de trás.

A trilha sonora daquela noite era o Big Time, do Tom Waits. A faixa era Cold Cold Ground. Me sentia enterrada à sete palmos e nada pareceu mais adequado para o momento. No caminho, as duas resolveram comprar flores para a esposa de nosso tio, que tinha acabado de ser mãe.

Pulo do carro praticamente no meio da avenida e começo a bisbilhotar as flores nas barraquinhas em frente ao cemitério. Rosas, margaridas, gardênias, lírios. Escolhemos um buquê de rosas cor de chá com bordas avermelhadas e ganhei uma flor da vendedora – acho que por ter conversado com ela, numa noite na qual as pessoas estão muito mais preocupadas com suas festas natalinas.

Chegamos a casa dos meus avós. Um prédio bonito, de classe média, daqueles condomínios cheios de crianças saudáveis e barulhentas. Minha avó põe as flores no vaso e não percebe o cartão dentro do embrulho, que mergulha na água junto com as flores.

Conversa vai, conversa vem, conversa sem interesse, sem assunto, só ruídos humanos por todos os lados. Fulano casou, cicrano morreu, não sei quem traiu o marido, não sei quem mais foi morar no exterior.

Na TV, as comemorações brancas, o papa se preparando para falar e eu me entupindo de tudo que tivesse algum teor alcoólico. Meu avô adentra a sala para nos cumprimentar e o clima fecha e escurece as luzinhas da árvore. Cheio de lenços, tubos estranhos, andar atrapalhado. Ele está com um câncer terminal espalhado por diferentes partes do corpo não tão velho.

Mas quebrando as expectativas cheias de pesar dos que o cercavam, não fala conosco, vai até a cozinha e volta com uma garrafa de champagne que começa a servir na sala, com um sorriso sarcástico. Mesmo sem conseguir falar, me interesso mais por suas expressões silenciosas do que pelo resto. Identifico-me com seu humor ácido, hedonista nato. Mas realmente não sei de onde ele ainda consegue tirar tanto bom humor.

Apenas um ano antes, conversávamos na mesa da sala de jantar. Ele já estava doente, mas ainda conseguia falar um pouco. Ironizava de certa forma a cerimônia ao seu redor, e bebíamos vodka russa, licor, whisky e tudo o que pudesse alimentar nosso natal hedonista que parecia mais um dia qualquer, que seria esquecido como todos os outros.

Sempre encontro alguém pela última vez na noite de natal, e nesse ano foi ele. Alguns meses depois, estaria em uma cama de hospital, tomando morfina para aliviar as dores e esperando o chamado divino no qual nunca acreditou. Não o conheci muito bem, mas sabia que essa morfina foi seu último momento de prazer e fiquei feliz por ele, como se estivesse injetando morfina nas minhas próprias veias.

Algum tempo depois de sua morte descobri antigas histórias sobre navios, jogatinas, prostitutas. Sempre dava risada ao pensar naquele velho em fim de linha aprontando todas as loucuras que lhe foram permitidas.

Nesse natal não haverá vodka russa nem a ironia ácida e cheia de pecado para me salvar daquela noite. Mas uma coisa é certa: não esquecerei de, ao menos em pensamento, fazer um brinde àquele hedonista de caráter duvidoso que cantava em seus últimos dias “beba por mim, beba pela minha saúde, pois você sabe que não posso mais beber!”.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

"Happiness is a warm gun"

.

“ELE morreu”. A voz ao telefone era seca e direta, como alguém sem paciência e disposição física para argumentar contra o destino ou as causas que levam a vida para a eternidade. Fiz silêncio. Depois pensei em ligar para o trabalho e avisar sobre minha ausência devido a necessidade de ir à festa de seu funeral. Ocupado. Fora de área. Então dane-se o telefone.

Sua mãe chorava na porta do meu quarto e por alguns segundos consegui perceber a dor tão profunda de um ser que acaba de perder o filho. Tinha que correr para o funeral. Antes precisava levar um presente para o morto e comprar um suco para curar a ressaca da noite anterior.

Cheguei a um lugar enorme, que vendia de tudo. Livros, bicicletas, carne, roupas, geladeira, qualquer objeto que tivesse um nome e alguma (in)utilidade estava naquele templo do capitalismo. Camisetas de Che Guevara, Salvador Allende e Jesus Cristo por 9,99.

Dou voltas sem sentido naquele labirinto moderno e reflito sobre questões de vida e morte, felicidade e desespero, amor e ódio. Tudo me parece muito claro, como uma visão: numa tradução livre, “felicidade é uma arma carregada”. Dou risada da minha própria reflexão e saio cantarolando a música.

Um homem que parecia ter saído direto dos anos 30, com um bigode charmoso e chapéu a la Mastroianni estava sentado em um banco e me observou passar. Ouvindo a música, começou a cantá-la também.

Com delicadeza, retirou uma arma do casaco negro e passou a atirar em tudo a sua volta. As pessoas correram como formigas desgovernadas que sentem a ameaça do intruso em sua terra. E a música cresceu ao fundo, com a voz de Lennon parecendo uma professia apocalíptica vinda direto do inferno. Ou talvez de algum lugar mais profundo.

Precisava pegar um ônibus. Mas que ônibus? Vou e volto por linhas inexistentes de um universo onírico me deparando com faces que nunca havia encontrado antes em vida. Chego ao local. A tristeza percorria faces apáticas em toda a imensidão da casa onde o velório prosseguia.

Estava na cozinha comendo salgadinhos preparados para a festa do funeral quando ouço gritos no quarto. O morto havia voltado para acertar umas pendências deixadas em vida. O homem de chapéu reaparece na hora apropriada e atira nele, que se estende no caixão como se nada tivesse acontecido.

“Happiness is a warm gun, momma!
Bang! Bang!
Shoot! Shoot!”.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Resquício de outras épocas

(Território referente ao atual México, cerca de 700 anos atrás)

"A poeira já me corrói o nariz, sinto o sangue ficando seco ao redor da boca. Tão estranho não saber o lugar exato a que estou chegando, apesar de saber para onde me levam. Sinto-me um bicho acuado.

Nessas horas me lembro dos pássaros que cacei e dos acertos de contas na aldeia, vi olhos vítreos tentando viver enquanto a morte os carregava. Nos meus braços. Ao deus Sol fiz oferendas, à chuva dei a lágrima de crianças pardas com olhos negros e brilhantes para a próxima colheita ser próspera. E agora é minha vez.

Minhas pernas não conseguem dar apoio ao corpo nessa subida da escadaria. Meu Sol, talvez seja a última vez que eu te verei neste corpo. Penso em meus antepassados que talvez vá encontrar nessa nova terra desconhecida além do solo desértico no qual nasci. Mi madre, no llores. Estarei em seu altar.

O sacerdote parece impassível diante do meu temor. Está muito compenetrado afiando os instrumentos de sua devoção. Meu coração bate rápido, o vento traz grãos de areia que se misturam ao suor.

Agora o céu está mais próximo. Desisto de lutar, não há mais para onde fugir. Espero que meus irmãos de outras eras me carreguem pelo caminho seguro rumo a um lugar melhor, como me foi prometido por esses que me levam a vida.

Chegamos ao topo. Agora a arma se aproxima do meu peito. Despeço-me de ti meu senhor iluminado antes que meu sangue tinto escorra em devoção nas tuas escadarias.

Meu coração ainda irá pulsar nas mãos do assassino, antes mesmo de minha alma se desprender do corpo. Hei de abandonar tudo por ti Huitzilopochtli. E que o medo jamais vença a guerra, que nunca há de cessar na carne humana".

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Filhos da Cultura- Cáp. 9

A macro vida de um micro empresário

"Baseado na crença de que ativos intangíveis são parte do DNA de corporações visionárias, como líder tenho a função de influenciar meus funcionários em suas atitudes a nível local para que hábitos sejam incorporados aos padrões da empresa. Toda a sociedade precisa de alguém para seguir, um ícone, um modelo, uma pessoa na qual a massa confie.

Todos nós empresários sabemos que a massa não é lá essas coisas. Na verdade, é uma porção de gente com poucos dotes mentais. Ou para ser mais claro, um monte de gente estúpida que precisa seguir alguma coisa como cegos em tiroteio.

Voltando... com base nessa percepção da necessidade efetiva de mudar efetivamente o pensamento efetivo de funcionários não efetivos, me coloco na posição e na obrigação moral de auxiliar o mundo a se tornar um lugar melhor. Bom, pelo menos a minha empresa. Ou talvez minha casa. Uma banheira de espuma e férias na Europa seriam de bom tamanho. Talvez mudar de país, por que esse aqui é governado por uma anta ex-metalúrgica.

Bom mesmo era o Nixon. Lembro de quando era pequeno, nos anos 50, e viajava com a família para os Estados Unidos. Povo bom, branco de pele e coração. Só por causa de meia dúzia de vietnamitas fizeram o monstro do Nixon, mas só eu estava lá e me lembro que vida era muito boa.

Aqui no Brasil não. Ao invés de injetar dinheiro na economia para evitar a recessão (!), dar dinheiro às empresas, que fazem esse país avançar, o governo dá dinheiro para os pobres. 22 reais por mês. E quem precisa dessa mixaria? Com esse dinheiro multiplicado por milhões de favelados o setor automobilístico sairia do vermelho mais rápido do que entrou.

E imaginem só, um presidente que não lê jornal, tinha que dar nisso mesmo. Eu não. Fato é que me formei na melhor faculdade do estado há 40 anos e trabalhei na área muito tempo. Depois criei minha própria empresa. Agora sou um grande microempresário.

Até hoje não conheci ninguém com um nível intelectual que pudesse ser comparado ao meu (só os meus antigos patrões, porque se eles estavam naquele lugar, eram pessoas incríveis). E aquele tal de Hunter Thompson? Pois é, de tempos em tempos sempre aparece um novo idiota que se acha jornalista, mas essa é uma arte para poucos, apenas privilegiados tem o dom de escrever.

Bom, vou me retirar pois tenho que terminar a minha leitura diária de todos os jornais de economia e depois mandar um e-mail pro José Eli da Veiga elogiando seus artigos publicados até hoje. Um gênio! Gênio que é gênio ajuda as empresas a saírem da crise, o modelo capitalista sobreviver, reflete sobre a recessão, e não fica pintando rostos deformados nas paredes nem tomando antidepressivos.

Odeio depressão. Com um mundo tão maravilhoso, como alguém pode ter depressão? Com lugares como as ilhas do Caribe e as praias de Ibiza, como não ser feliz?
Considero-me uma pessoa extremamente feliz apesar de dormir uma hora por noite, tenho muito orgulho disso. Apenas uma grande perda no mercado de ações faria com que eu me matasse. Preciso ver a cotação de hoje".

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Filhos da Cultura- cáp. 8

O lamento dos deslocados

"Já faz algum tempo que minha existência não importa para mais ninguém... nem mesmo para mim. Mas vida, nem parece que eu tenha te amado tanto, e eu realmente te amei. Quando se é poesia e infância, lúdico e sagrado, as possibilidades parecem infinitas. Os ensolarados se tornaram apenas este maldito hoje".

São Paulo, 1983

"Um quadrado na parede. Retas que delimitam minha existência. Lá fora não há nada. Hoje não é um dia para se ganhar. Amanhã será? Pausa para o trabalho, função automática acionada, prazer inexistente. Mas daqui a pouco saio na chuva e volto a me machucar. Alegria alegria, sangre desse depressão de merda! O ar frio dessas paredes me lembra a sala de espra de um hospital. Estou na cama cheio de tubos e seringas no braço... a vida é frágil, esta que vivo mais ainda. Desgosto profundo".

Lourenço abre a porta. Observa o corredor até a escada que contorna o edíficio. Mas realmente se torna cada dia difícil encarar o parapeito, ele certamente se jogaria. Ou estaria apenas se enganando? Mais um covarde em seu casaco de couro em um dia frio. Talvez a própria vida tenha lhe enganado esse tempo todo. Lembrou-se de quando era mais jovem, e sonhava com Moscou, com as ruas de Berlin, qualquer lugar que fosse uma novidade interessante, um novo motivo que lhe trombasse no acaso de algum dia.

Venta muito no alto do edifício. O sétimo andar poderia lhe estourar os miolos.
Ora, tão simples cair numa esquizofrênia sem volta. Não existe espaço para quem nunca se encaixa em lugar algum. Lourenço se camufla na pele de seu casaco medíocre, como sempre faz para encarar o frio. O caminho é o mesmo de todos os dias, os mesmo contornos na calçada, a mesma espectativa dissecada na próxima esquina, outra frustação as sete da noite. Isso tudo é completamente simples, pois o nosso personagem não se dá ao luxo de ser alguém.

Mas existe o real em cada um, pelo menos ele acredita. Porém há de ser muito forte para ser real, é como estar morto, com os ossos a mostra, com toda delicadeza e fragilidade humana exposta a flor da pele; e isso pode doer mais do que o suportável. Passando pela ponte, Lourenço se lembra de algumas cenas curiosas da infância, apesar de nem ao menos estar certo de ter sido criança anteriormente. "Sonhar deve ser uma doença, a mais fatal de todas. Esse raciocínio pode soar um tanto irônico, já que a fatalaidade pode exterminar o hoje com apenas um sopro na direção contrária à sua vida".

"Alguns sonhos duram a vida inteira. Eles imergem nos nervos e ficam lá por décadas. E pode-se perguntar o porque uma pessoa que vive com este mal não dá fim em tudo com as próprias mãos? Por que insiste nesse desespero, se como o nó no cadarço que aprendemos a fazer nos anos de infância, temos habilidade suficiente para deslocar o pescoço que nos sustenta a cabeça? Simples assim: o verme do sonho é a esperança, que parece boa e serena até nos fazer acordar desse ópio sonâmbulo com uma facada nas costas".

Tão fácil cair numa esquizofrênia sem volta...

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Filhos da Cultura - Cáp.7

Despedidas

“Carrego a morte no bolso, como diria aquele velho escritor bêbado de outra época. E às vezes a encaro só para ter a sensação de fatalidade da minha existência. Entretanto, nunca me sinto preparado o suficiente.

Ontem a noite minha mãe me deu um bombom de presente e disse que eu deveria ver meu pai antes do câncer acabar com sua vida. Pensei em responder: pra que? Pra que tudo isso? Todos vamos morrer, não vamos? Então por que não encarar isso de uma vez e parar com as despedidas sem sentido?

Queria poder ouvir apenas o necessário. Tantas palavras inúteis me envolvem grande parte do tempo. E pra que? Vamos morrer do mesmo jeito.

A única coisa que desejo para o meu pai e seu câncer é que ele encontre um lugar bem melhor do que esta insanidade chamada vida, onde seus sonhos de infância se realizem, onde a dor não possa mais lhe atingir, onde o tempo não corra alucinado contra a vida, onde ele possa voar mais alto que os anjos.

Um lugar no qual tudo aquilo que ele desejou um dia, tudo aquilo em que acreditava quando era pequeno, tolamente, pudesse se tornar o que ele chamaria de vida aos 60. Que todos nós encontremos nossos sonhos destruídos pela vida em outro lugar, talvez nesse lugar chamado morte. Essa é uma luta sem vencedores”.

quarta-feira, 1 de julho de 2009

Filhos da Cultura - Cáp.6

A ansiedade
- perifl

Ela é magra. Bem mais magra do que você imagina. Tem os ossos a mostra, tensos, rijos, quase perfurando a fina pele. Além disso, a altura desproporcional causa um certo mal-estar associada a essa estrutura tão frágil. Em seu comprimento, a coloração entre o roxo escuro e o azul petróleo transmitem um ar de doença por onde passa. Os dedos são finos e longos, com as veias saltando da pele e as articulações machucadas por tantos movimentos repetitivos.

Ela passa a maior parte do tempo escondida, não suporta a presença alheia, a convivência; prefere a fuga e um lugar para se deteriorar sozinha. Qualquer buraco é melhor que a claridade. Mas quando aparece é desesperada, intensa e quase insana. Não há um segundo de descanso. Os membros se movem incessantemente até surgir dor em cada ponto espalhado no corpo.

O coração é uma bomba pulsando dolosamente, a mente parece desejar transpor o limiar que lhe é restrito, o imaginável, para ganhar pernas e sair correndo em busca da paz que não encontra na própria morada. A respiração não existe: o que há é um fluxo de gás carbônico ofegante que entra e sai dos pulmões de maneira aleatória e na maior parte das vezes não leva ar suficiente para satisfazer o corpo.

A cabeça calva com veias azuis saltitando nas têmporas denuncia a enxaqueca permanente. Os dentes são muito afiados e machucam a própria pele o tempo inteiro. Na corrida contra ela mesma, só encontra a perda no final.
Nenhum momento é agradável.
Nenhum suspiro traz o alívio.