quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Show: Luiz Tatit, José Miguel Wisnik e Arthur Nestrovski

foto por Circus Produções


O fim chega pra todos – inclusive para ela, a canção.

Mas esse final é derradeiro ou apenas o ponto de partida para um novo começo? Em um extremo, a canção continua agarrada às raízes, à tradição. Em outro, voa junto à transgressão invisível do futuro, com o perigo de perder a identidade. E sobre qual ponto dessa trépida linha poderíamos situar a música brasileira atualmente? Todas essas questões envolveram a apresentação de três professores no assunto – literalmente falando – no último domingo (22/05).

Alguns minutos após o sinal que encerra a entrada ao teatro do SESC Vila Mariana (SP), Luiz Tatit, membro fundador do vanguardista grupo Rumo em 1974, adentra o palco de forma discreta, violão em punho, junto a Arthur Nestrovski, violonista e diretor artístico da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (OSESP). O auditório fecha-se em um silêncio contemplador para ouvir o primeiro “declamar” a canção título de seu último álbum, Sem Destino (2010). “Tudo que era o meu destino na verdade nunca me aconteceu. Pode ter acontecido pra alguma pessoa, mas não era eu”.

Dilacerando sutilmente o domingo à noite da classe média paulistana, as palavras abriram o show de gravação do DVD O Fim da Canção, que já traz consigo a pergunta que não quer calar: será mesmo o fim? Jaqueline, personagem de uma das faixas de Sem Destino passa o verão compondo para no inverno cantar, como na fábula da cigarra e da formiga. Ainda há esperança.

Na sequência, outro mestre – esse em literatura – adentra o que poderia ser uma reunião de docentes. José Miguel Wisnik, acostumado a transitar pelas salas de aula e pelos palcos, une as possibilidades da erudição à franqueza da expressão – algo que já faz em seus livros, com destaque para o indispensável O Som e o Sentido.



As composições dos três contam com interpretações conjuntas, em duos, solo, e com a participação do cantor Celso Sim, entrelaçadas por momentos memoráveis entre a morte de uma canção e o nascimento de outra. Em “Errei com você”, Wisnik erra de fato a letra e se corrige no final, tirando risadas da platéia que relembra o fato de estar diante de um professor.

Em “A Companheira”, Tatit, apresenta uma personagem que de tão companheira até pensa pelo outro. Para “Elisa”, desconstrói o tom sentimentalista da composição romântica com uma letra inspirada numa frase de Tom Zé durante entrevista, na qual o baiano cita “Pour Elise”, de Beethowen, como a música que mais representa São Paulo – a singela musiquinha do caminhão de gás – acabando assim com qualquer suspiro apaixonado do público.

Nestrovski, o mais erudito dos três, romantiza Schumann na bela versão “Pra que chorar” e acelera no ritmo da globalização na marchinha “Aquecimento global”. Essa é pra acabar – a última certeira de Tatit para “dispensar” o público – encerra o espetáculo deixando um tom de brincadeira e de reflexão, além de um precioso registro em DVD para ser conferido. “Tem hora que é do show / Tem hora que é da vida / E os dois estão ligados / Pela porta de saída”.

(Texto publicado originalmente no portal Rock in Press - www.rockinpress.com.br)

Entorpecidos de Sonhos na Lulilândia



Álbum: Cristalina
Artista: Lulina
Lançamento: 9/10/2009
Selo: YB Music
Site: Oficial: lulilandia.wordpress.com






Quando criança, sonhamos em ser grandes – olhamos para nós mesmos no futuro e nos vemos como alguém que chegou a algum lugar. Mas e quando uma pessoa, certo dia, se depara com o lugar-nenhum do espelho ao invés de todo aquele mundo criado na infância? Muitas vezes acaba por inebriar-se na própria desolação e tenta transformar a fumaça em algodão-doce, numa volta ao pequeno que nunca deixou de ser.

É isso que Lulina faz. Acende uma luzinha embaixo da cabana de cobertor e sussurra causos, faz chacota, conta fábulas fofas e, às vezes, grotescas. Cristalina (2009), seu álbum de “estréia” – entre aspas porque passou por um processo muito interessante até ser cristalizado de fato – traz músicas primeiramente gravadas em plays caseiros, com o laptop Hermeto (Pascal?), compostas no chão da sala entre cervejas e amigos, durante domingos de febre ou noites fúnebres. Aqui, essas músicas soam limpas, “perfeitas”, perdem um pouco da inocência doce e tosca de algumas gravações precárias.

Fazer uma resenha desse álbum é tarefa ingrata porque o retrato aéreo da Lulilândia já foi registrado por Xico Sá, que certamente a entende muito melhor do que eu. Eles falam a mesma língua (reparem nas letras dela e na resenha dele). Mas não custa tentar olhar por um ângulo diferente – entre a luz e a sombra da toca do coelho. E como em todo sonho ou realidade inebriada, não vou ater-me a sequências. Cristalina é um disco para ser lido como uma fábula, ouvido como uma trilha sonora alternativa para o filme “Onde Vivem os Monstros”, de Spike Jonze, degustado como o bolo de chocolate feito pela sua avó.


Em “Do You Remember, Laura?”, a moça parece uma criança lendo a redação na escola. Ca-da sí-la-ba pronunciada com ênfase, num encaixe de lego na melodia. Já é grande, mas fala como criança. Até para quem odeia esse estilo de música a nostalgia venta gelada pela porta dos fundos. “Jerry Lewis” soa bonitinha como Belle & Sebastian. Porém, as doenças do senhor Lewis, seus 28 quilos a mais e sua decadência derradeira – toda essa desgraça condensada – acabam tão dissonantes da melodia de acordes maiores que dá vontade de rir.

Esse contraste entre letra e melodia é o mais interessante do álbum, sem dúvida. “13 de Junho” segue a linha divertida, assim como “O Príncipe”, que quase cai no brega com um solo de teclado de gosto duvidoso. Avaliar se os timbres são intencionais para tirar sarro ou se no fundo há um desejo de soar conceitual e contemporâneo fica a critério do ouvinte. Aposto na primeira opção.

“Sangue de ET” é outra com uma letra muito boa, uma “hemodiálise de aliens pra deixar todo mundo normal”. O tecladinho de efeitos alienígenas enche um pouco às vezes, mas vale dentro desse contexto extraterrestre. Mais doenças em “Biebs”, quando a pobre Lulina não sabe se dormiu ou morreu com bolhas na pleura. “No café eu parei de respirar e comecei a formigar”. Se não fossem as melodias alegres, esse álbum seria fúnebre. E com mais 30% de doenças, poderia acabar em “Doutores da Alegria”. A dose do remédio foi na medida.


Clipe de “Nós

Percebemos que “Criar minhocas é um negócio lucrativo” para nossa Alice tupiniquim. Pessoas com cabeça de televisão e seus “Argumentos” numa nuvem de poluição a inebriam e invadem seus sonhos. Mas o onírico acaba em “Narcolepsia” – acorda, atende o telefone, trabalha – todos os imperativos estão contra você. “Mi Gostar Musga” é uma dor de cotovelo amorosa da qual se esquece rápido, enquanto o banjo da “Margarida” dura um dia de sol no parque. A certa altura, a voz muito açucarada começa a enjoar. Mas daí você se lembra que são músicas de ninar para gente grande. Nada de estresse. É um álbum inocente.

A linha vocal segue sem muita variação, suave, talvez herança da Bossa Nova – porque já a “Bosta Nova” remete a um “Xou da Xuxa” esquizofrênico – “Vou explodir de tanta alegria” é uma passagem hilária e deprimente. Cai como uma Cidra no Ano Novo, só que muito mais forte.

Na “Música Para Colocar Naquele Som Com Despertador” temos um bom resumo do ser Lulina, letra boa, parece otimista nas primeiras palavras para em seguida descer a ladeira numa deprê feita de monotonia. Em “Poesia”, a risada é triste. E o sonho é bem agridoce. Vai saber se esse sonho é brisa de baseado na “Balada do Paulista”, né meu? Essa música é ótima. Até porque hoje em dia todo mundo se ofende muito fácil por muito pouco e muita gente deve ter tido vontade de mandar a Lulina se fuder, assim como a própria nos manda em “Subtexto”. Finalmente, “Bichinho do sono” tem a lisergia de um estado de transição – nos efeitos dela realmente se pode ouvir a voz do pequeno ser – e ajuda a voltar para a toca do coelho, para Lulilândia, para o mundo imaginado que conhecemos, mas do qual perdemos a chave no meio do caminho.

E como “a vida é desfazer Nós”, aqui eu me desfaço de vocês, vocês de mim e nós de Lulina, ela cheia de nós na cabeça e nós todos cheios de minhocas e sonhos entorpecidos.

(Texto originalmente publicado no portal Rock in Press: http://www.rockinpress.com.br/2011/07/11/entorpecidos-de-sonhos-na-lulilandia-lulina-cristalina/)

terça-feira, 24 de maio de 2011

A saga de Jesus pelo mundo pop

ELE é a prova cabal de que é possível ter muito mais do que 15 minutos de fama!


Moda divina
Que papa que nada – a entidade dita “pop” por um tal engenheiro com camisa de motivos florais já era há tempos, se é que um dia foi alguma coisa. Numa breve comparação: quem é o cara que mais aparece nas feiras artesanais cercado de santinhos de cerâmica, estampa mais paredes do que os quadros de Mao Tsé-Tung e Che Guevara juntos, atuou ao lado de Madonna em  Like a Prayer e tem até um famoso guaraná rosa-choque com o seu nome fabricado no nordeste brasileiro??? Jesus Christ!  

Aqui em São Paulo, atentando a essa visibilidade do filho de Deus na mídia, nasceu o duo de garage/blues/punk Jesus and the Groupies. Claro, sendo tão popular quanto outros ícones da música (à exceção dos Beatles, que são mais famosos), o rapaz também precisava de umas fãs enlouquecidas para internalizar o estereótipo de estrela do rock. A origem do nome do duo formado por Marco Butcher e Luis Tissot exemplifica perfeitamente a encarnação desse Jesus celebrity. Butcher se inspirou na resposta de uma frequentadora desses cultos exibidos na televisão – quando questionada sobre a primeira coisa que faria se tivesse a oportunidade de falar com o dito cujo, não tardou em enfatizar: pediria um autógrafo!

Single do duo Jesus & The Groupies
A emblemática mulher mal sabia que acabara de resumir a influência formada através de dois mil anos por meio de seu pedido cabuloso. Sim, um autógrafo. Pois qual a graça de conhecer Jesus se você não puder provar aos outros??? Nem toda a escola de Frankfurt definiria melhor as reações adversas da indústria cultural.

Voltando aos primórdios da música estranha produzida nos anos 80 encontramos, na minha opinião, a melhor expressão audiovisual que já foi criada em cima da famosa imagem do homem barbado de pés descalços: o vídeoclipe I´m kooler than Jesus, da banda americana de eletro-industrial My Life with the Thrill Kill Kult. Muito, mas muitooo mais intrigante que os filmes do Mel Gibson sobre o ícone pop que beiram – ou ultrapassam - o sadomasoquismo.

Em tradução livre, a música diz “sou mais legal que jesus”, mais “descolado” e, por que não, mais “da hora”. Ser mais cool que Jesus é absolutamente incrível - é como ser mais cool que John Lennon. Só pelo nome já valeria. Mas, indo além, essa composição nos brinda com o trecho "I was raised in Mississippi /I am the electric messiah/ the AC/DC god!" (Fui criado no Mississipi/ Sou o messias elétrico/ o Deus AC/DC) não deixando dúvida sobre a potência quase destrutiva desse clássico. 


Preso em UK
O personagem da música foi criado no Mississipi, terra do diabólico Robert Johnson, empunha sua guitarra elétrica messiânica e toca AC/DC – o que faria a mulher do autógrafo ter uma síncope ou ir à loucura. Nada que abale o ícone celestial, assim como Gaga não abalou o reinado de Madonna. Jesus rouba a cena no videoclipe que mistura imagens suas em pop art, pessoas estranhas dançando de forma mais estranha ainda e – o melhor de tudo, sem sombra de dúvida – santinhos rodopiando como globos de disco dos anos 70 num frenesi contagiante.

Por tudo isso e muito mais, ELE é a prova cabal de que é possível ter mais de 15 minutos de fama! 

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Vencedores sem caráter e sem limites

Longa parece uma mistura mal feita de Vanilla Sky (jovens executivos), Trainspotting (drogas) e Old Boy (tortura!) – mas não é que vale a pena assistí-lo? 

Do alto um prédio – ou melhor, de um bunker de luxo – vemos um homem prestes a se suicidar. O local está sendo invadido violentamente e não parece haver muita esperança para Eddie Morra. Esse primeiro clichê descarado (vá tomando nota, pois são vários), nos indica que alguma coisa deu errado no caminho de sucesso do jovem executivo... ou talvez o próprio caminho para o sucesso seja mais torto do que se imagina. Uma Nova Iorque que dá vertigem com tantas luzes e efeitos ambienta o recém lançado Sem Limites – e logo de saída vem a lembrança de Vanilla Sky: o sonho contemporâneo americano - ser uma pessoa bem sucedida nos negócios, que também ultrapassam as fronteiras com a globalização - é ameaçado de alguma forma.

Voltemos à vida de homem comum do protagonista antes de suas ascensão meteórica (segundo clichê descarado da película). Nos deparamos com um escritor que sofre um lapso de criatividade logo quando consegue assinar um contrato para lançar seu livro. Sua namorada o deixa por ele ser um perdedor vagabundo – ainda mais estando ela própria em ascensão profissional, precisando de alguém a sua altura. Desiludido e com cara de “bêbado e drogado” mesmo não o sendo ,- característica dos escritores, segundo o personagem – Morra tromba por acaso seu ex-cunhado metido com o tráfico, que lhe oferece uma droga nova em fase de testes chamada NZT.

Com a pílula, o escritor frustrado passa a ter acesso a todas as áreas do seu cérebro, conectando informações que o fazem resolver qualquer problema, ter ideias geniais, ser sociável, divertido e, acima de tudo, conveniente e centrado: olhando para gestos e detalhes das pessoas com quem conversa, sabe como agir para ganhar sua confiança; e não perde o foco de onde quer chegar. Sim, eis a sutil fórmula do sucesso. O protagonista escreve seu livro num ritmo frenético enquanto os efeitos da droga duram – até que precisa de mais suprimento e se torna um viciado na nova personalidade que adquire com a pilulazinha transparente (aqui temos nosso terceiro clichê).

Depois de muitos percalços como viciado, Morra consegue mais NZT e sua ascensão passa a ser meteórica. Da literatura vai à bolsa de valores - quer ser um vencedor, lembre-se - e em pouco tempo chama a atenção do presidente de uma corporação (Carl Van Loon, interpretado por Robert De Niro) que percebe seu talento para os negócios. Porém, seus limites vão indo cada vez mais longe e o personagem não consegue mais freá-los: a constante superação vira rotina e o jovem executivo passa a ser invejado e perseguido por causa de suas pílulas mágicas. Todos desejam ser vencedores como ele, e uma mãozinha pra chegar lá parece ser indispensável, seja ela sintética ou humana.

Finalmente, caro cinéfilo, na segunda parte do filme você se livra do arrependimento de ter ficado no cinema mesmo amaldiçoando todos os clichês americanos, cenas explicativas e frase de efeito. O bom-mocismo vai indo por água abaixo e, quanto mais podre e drogado Morra se torna, - aliás, como todo o meio que o cerca – mais alto vai. E vai feliz da vida na maior parte do tempo, pra fúria dos mais conservadores. Se mesmo com a vertigem provocada por viagens dentro de espelhos, ruas em movimento, quedas de edifícios e uma trilha sonora mais do que adequada pro deleite de uma ascensão eufórica, você continuou entediado, pelo menos o preço do ingresso vale pela surpresa dentro da estranha caixa que chega ao escritório enquanto Morra toma um sermão de Robert De Niro. Nada como um bom presentinho para nos lembrar que somos humanos!

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Mjötviður (A árvore do destino)




Hoje estive no céu
E ele era o próprio fogo
Uma imensidão laranja descoberta

As raízes alçaram-me da terra
Do subsolo trouxe minhas asas partidas
E as vi dissipando-se no ar rumo ao verdadeiro eu

Minha alma transubstanciou-se em névoa quente
Despi-me do estado-indivíduo e deixei de ser
Libertei-me das décadas e virei a essência

Imersa nas conexões universais
De vozes e dores ancestrais
De canto e contemplação 

*Ouvindo o álbum Mjötviður Mær, Þeyr (imagem)

"Þeyr foi uma banda islandesa de new wave do início dos anos 80. Envolta em um véu de mistério, sua existência de três anos foi caracterizada por um profundo interesse na sabedoria ancestral", Wikipedia.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

W-h-o A-r-e Y-o-u?



Você abre a boca. Sono?
Quando era um bebê você abria a boca pra chorar, pra chamar.
Alguém ainda escuta o seu choro?
Você me lembra o lobo mau com os dentes brilhando à luz da TV.
Ele vivia nos livros. Nós tínhamos medo dele.
Agora ele tem medo de nós
Que tipo de pessoas nos tornamos?

Fecha os olhos. Uma fuga para o sonho?
Se eu não te conhecesse poderia dizer quem você é
Mas como sei quem você é, nunca poderei te conhecer de verdade
Porque uma pessoa é feita do que prova aos outros,
E você não quer nos decepcionar, quer?
Eu juro que acredito se você continuar mentindo
Mas minta direito.

A centopéia fuma na TV. Me dá um cigarro?
Eu adorava a Alice, agora a odeio
Mas do gato sempre gostei
E quando você abre a boca vira um sorriso gigante.
“Sorria e o mundo irá sorrir com você”
Old boy, que mentira, o mundo se fecha a nossa volta
E os nossos dentes desaparecem.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2011

Um fragmento

Heavy Roses, Edward Steichen

As rosas morrem para satisfazer o nosso olhar,
Uma delas me disse enquanto a fitava no vaso.

Dizia-me isso e desintegrava-se no vento, no tempo,
Nada mais do que um fragmento da imutável eternidade.

Espero que a rosa encontre seu caminho para o eterno
E não seja mais obrigada a suportar calada o deleite do nosso egoísmo.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

O transtorno da máquina inseto


- Tríade city 3 -

“Dear City,

Enquanto o Burroughs está lá fora, procurando o pico das dez, resolvi lhe escrever. Ou melhor, me escrever. Sei que a relação entre nós três não anda nada bem.

Ah minha cara, a vida não tem sido boa dentro de você. E nem dentro de mim. É tec tec o dia todo e aquele cara alucinando nas minhas patas; os pensamentos, que nem são meus, correm pelas folhas e caem no chão numa mistura nojenta de sangue e lixo.

Quando menos se espera ele volta dos seus braços. E nem quero imaginar o que você tem feito com o cara durante todos esses anos, parece-me cada dia mais acabado. Sai atrás de algo que nunca encontra, procura luz na noite e esconde-se no limbo do esquecimento de dia. Mas sempre retorna a você, atira-se nas suas ruas imundas, voando em torno do néon feito vaga-lume e caindo de cara no concreto quando encontra a realidade.

Depois retorna ao tec tec tec, e aquelas pessoas estranhas passam por suas veias, dedos, pelas minhas patas, ganham vida numa dimensão distinta. Seres sem nome, sem lembrança. Posso imaginar o que eles fizeram nas suas entranhas para receber tamanho troco. No final o seu esgoto é a nossa única saída, desculpe-nos o transtorno.

Att.”

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O ente magnânimo

George Grosz, The Lovesick Man, 1916

- Tríade city 2 -

Disseram-me certa vez que a cidade é não é um ente magnânimo como a natureza, muito pelo contrário – ela é o reflexo do pior que existe em nós. Saí às ruas para tentar descobrir. Parei no centro dela e pensei na maneira mais sutil de agir, sem chamar sua atenção. Não deu certo.

- “Olhe para cima, não tenha medo”, disse-me a cidade. Mas jamais acreditaria nela. Fiquei quieto, com medo. 

- “Olhe para cima inseto”, insistiu, “olhe para as torres, edifícios... Você nunca será maior do que eles”.

Nunca serei maior do que os edifícios, a cidade tem razão. Será que alguém poderia ser? Encontro um policial na rua e pergunto:

- “E você, pode ser maior do que os edifícios?”.
- “Não, não posso”, ele responde, e acrescenta, “mas posso ser maior do que você”.

Não vejo muita vantagem em ser maior do que um inseto quando não se pode ir além das celas da cidade. Pelo menos posso escapar pelo espaço entre as grades. Vejo um homem de gravata e insisto na questão.

- “E você, pode ser maior do que eu, maior até do que o policial?”.
- “Não, eu não posso”, diz. “Mas os edifícios podem. E eles são meus”.