quarta-feira, 7 de julho de 2010

A peça


Imagem: Catalan Landscape: The Hunter, Joan Miró

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No início a peça achava que fazia parte do tabuleiro de xadrez.

Começou pretensiosa, queria ser rei, rainha. Após a primeira derrota, antes mesmo de entrar em campo, cobiçou ao menos o posto de um bispo ou de uma torre. Perdida a prepotência inicial, deixou-se estar entre os peões. Mas a recepção não foi calorosa.

Lhe empurraram para fora do tabuleiro, era diferente deles. A cor não era a mesma, o desenho não era o mesmo, tudo era estranho ao mundo das peças de xadrez. Sem nenhuma utilidade específica, a peça ficou de canto em canto obstruindo passagem, ocupando espaços alheios e importunando o campo de visão das outras até resolver ir embora.

Mas não tinha onde passar a noite. Para sua esperança, avistou ao longe um jogo de damas. As senhoras circulares e chatas logo a olharam de soslaio, mas pouco fizeram. A peça achou que finalmente havia se encontrado. Pura ilusão. Também era uma peça estranha entre as grã-finas.

Quando a caixa das pedras estava sendo fechada após longa batalha, delicadamente, as damas sentiram lhe informar que não havia mais espaço para pernoitar por ali. Quando deu as costas e seguiu seu caminho, pode ouvir ainda algumas risadinhas jocosas ao fundo.

Para onde poderia ir? Os tabuleiros não são lugares de fácil adaptação. Todos são parecidos entre si e um corpo estranho pode causar grande estrago mostrando que a preciosa semelhança não passa de um conjunto de plástico vazio e frágil. Ela era de madeira, hoje em dia quase não se fazem peças de tamanha densidade.

Procurou se encaixar no Gamão. War. No auge do desespero foi para Las Vegas tentar a sorte rodando feito uma prostituta nas mesas de jogatina. Logo começou a cair em copos de whisky e, em algumas semanas, já mergulhava neles seguindo o próprio vício.

No final de uma manhã ensolarada, em plena ressaca, a peça acordou e saiu a cambalear pelas ruas na tentativa de encontrar algum ser inanimado com quem pudesse conversar sobre seus dias solitários.

Numa distração matutina, acabou atropelada por um pé humano no meio da calçada e voou para longe. Com a madeira dolorida, ainda sentiu alguém carrega-la e lança-la direto a uma caçamba. Quando acordou, estava cercada por outras peças – todas estranhas, quebradas, mutiladas, diferentes. Finalmente em casa.

Um comentário:

Debie disse...

ótimo conto, me fez refletir sobre estar em um jogo, a sociedade é um que ou no exclui ou nos engloba em um tabuleiro onde você nunca será um vencedor, e passará o restante do jogo com a mera ilusão que vencer é algo positivo ...

:) muito bom o texto ...