Algumas pessoas têm enzimas a menos na cabeça, como diria o meu pai, os chamados anormais. E os sintomas adversos incluem sensações como sentir o tempo passar no vento frio acompanhado pela chuva áspera e cortante. Sentir a ausência de algo que nem sabe explicar o que é. Sentir na garganta um nó instransponível formado por toda a angústia ancestral do mundo.
Um detalhe das pessoas que possuem esse defeito (que talvez seja genético) é a capacidade de se relacionar e admirar apenas os seus semelhantes anormais. E justamente por isso a vida acaba sendo tão solitária, por ser tão difícil encontrar as outras sem-enzimas por aí para formar um vazio completo e construir o abismo para se jogar dentro.
Alguns consideram a falta da enzima uma doença, mas a maioria acredita que seja uma opção. Tenho uma teoria sobre quando se perde essa enzima. Se você sofre algum impacto muito forte na sua mente ainda jovem a tendência de perdê-la é muito grande. E não tem nada a ver com locomoção, fome, frio.
As enzimas desaparecem diante da cara e da indiferença do médico. Na risada e na indiferença do grupo. Na fala e na indiferença da família. Na incompreensão e indiferença do cônjuge. Na punição e indiferença do trabalho. Na dor e indiferença por si mesmo. Um nada multiplicado por milhares de vezes.
Não há festas de aniversário para pessoas sem enzimas.
Não há balada.
Não há férias.
Não há domingo.
Não há família.
Não há plano.
Não há futuro.
Não há empatia.
Não há nada.
De tempos em tempos essas pessoas anormais se encontram no fim do mundo para se distrairem e unir suas ausências, criando sensações etéreas e desconexas. Dessa união nasce o que as pessoas normais chamam de arte.